Um
comboio para o desenvolvimento psicológico
Vejamos então como essa
simples experiência de um comboio que passa regularmente nos transporta para duas
dimensões básicas e fundamentais do desenvolvimento psicológico.
Em primeiro lugar, não há desenvolvimento psicológico sem
experiência de si e do mundo.
Como poderia dizer o
Tiago Fonseca quando nos descreve a percepção, objectivamente, é sempre um
comboio, que repete o mesmo percurso, sensivelmente à mesma velocidade. Mas,
não é isso que aqui nos interessa. Aqui fala-se
da nossa percepção, da experiência que nós próprios construímos e que nos leva
à consciência da necessidade que, uns e outros, sentimos de compreender o
tempo.
Tal como este e muitos
filósofos, nós, os psicólogos, falamos sempre, de uma forma ou de outra, sobre
a experiência de nós próprios e do mundo que nos rodeia; mas, ao contrário dos
filósofos, procuramos uma descrição e compreensão científica dessa experiência e
da forma como ela regula a nossa conduta e a conduta humana, em geral.
Em segundo lugar, não há desenvolvimento psicológico sem acção,
sem construção activa da experiência de si e do mundo.
Actualmente, para a
maioria dos psicólogos e, particularmente, dos psicólogos do desenvolvimento, percepcionar,
memorizar, aprender, conhecer, pensar, sentir, não é, como queriam os filósofos
empiristas, captar e reproduzir passivamente o mundo dito real, objectivo ou meramente
sensitivo; nem é, como queriam os filósofos racionalistas, elaborar um mundo
ideal, lógico ou meramente subjectivo.
Se
assim fosse, poderíamos pôr a hipótese extrema que, chegados ao século XXI, já
não haveria, por exemplo, necessidade de investigação científica, pois qualquer
destes mundos, empírico ou racional, estaria há muito desvendado.
Se assim fosse, a
passagem regular de um simples comboio despertaria necessariamente em qualquer
observador a mesma experiência, o que, de facto, não acontece. Pensem no “Homem do Violino” de que também nos
fala o Tiago Fonseca. Quando tocou no metro, todos os que ali passavam o
ignoraram, salvo um desses passantes, que não se submeteu ao estereótipo e se
deixou fascinar pela magia daquela música.
Deixo-vos uma
definição, proposta por Serge Netchine (1970, p. 304), das perspectivas
filosóficas designadas por empirismo (cf. Locke e Hume, entre outros) e
racionalismo (cf. Leibniz, entre outros) ou, na tradição da filosofia marxista,
designadas por materialismo e idealismo:
“Os
empiristas defendem que as ideias são adquiridas a partir da experiência e,
portanto, que elas têm uma génese; mas, esta perspectiva é insatisfatória
enquanto “doutrina da acomodação que esqueceu a existência da assimilação” (Piaget,
1970, p 68). Dito de outro modo, o empirismo propõe uma concepção do
psiquismo…como construção passiva a partir da acção da realidade sensível.
Quanto
aos racionalistas, eles são…inatistas, pois afirmam que as ideias estão no
espírito antes de toda a experiência e que regulam as aquisições, em vez de
derivarem delas. Assim sendo, insistem, correctamente, no papel activo do
sujeito no conhecimento, mas negam ou subestimam os efeitos da experiência
recebida por contacto com a realidade objectiva. Apresentam então “doutrinas da
assimilação pura que esquecem as suas relações com a acomodação” (Piaget, 1970,
p. 68)”.
Percepcionar,
memorizar, aprender, conhecer, pensar, sentir, será então, dizem-nos particularmente
os psicólogos do desenvolvimento (Piaget, Vygotski e muitos outros), agir e
interagir com o mundo externo ou interno a cada um de nós e, progressivamente, ir
construindo e reconstruindo essa experiência empírica, a representação que
temos de nós próprios e do mundo, à medida que se vai organizando e
reorganizando a nossa própria acção, ou seja, a nossa conduta de relação connosco
e com o mundo que vivemos.
O
que será isto? Porque que é que os investigadores nos dizem que, basicamente,
este é o processo de desenvolvimento psicológico?
Ficam estas duas
questões para cada um pensar sozinho e, juntos, conseguirmos compreender, mais
e melhor, o nosso comboio…
M. Stella Aguiar
Referências:
Netchine, S. (1970).
Sur les notions d’enfance et de changement dans le débat entre rationalistes et empiristes.
Enfance, (3-5), p. 303-324.