A
identidade de alguém constrói-se no espaço. Em termos de desenvolvimento, é na
exploração do que está para além do conforto materno, com a aquisição da marcha,
que a separação / individuação ganha efectividade. É na forma como esse espaço é explorado, no sentimento que envolve essa
actividade, a maior ou menor ansiedade do adulto, a segurança de que o outro
não desaparece com o afastamento, que se gera a confiança essencial na abertura
ao mundo.
Alguns
autores consideram que o mapeamento do real, a forma como nos posicionamos face
ao que nos envolve, a capacidade de nos perdermos e nos reencontrarmos, tem a
sua raiz nesse processo de estabelecer uma distância face ao objecto primário.
A distância assim criada, cria espaço para o preenchimento de memórias e
referências passíveis de serem evocadas na ausência. Esse preenchimento, essa
evocação garante uma atitude tranquila face ao desconhecido. De algum modo o
caminho de regresso será encontrado e uma cara conhecida nos esperará para
ouvir a nossa história, as nossas aventuras.
Com o crescimento, muda o enredo,
mudam os contextos, mudam os personagens, mas de algum modo repete-se a
história. Itálo Calvino fala-nos
da importância de descobrir o mundo para reforçar o sentimento que o nosso
espaço, a nossa cidade é uma, é aquela onde nos sentimos bem e à qual
regressamos sempre, mesmo quando maravilhados com o que o mundo nos oferece.
E
como se gera esse espaço de pertença? O
jogo de construção desse espaço não é simples nem tranquilo. Nem sempre é
possível haver um quarto próprio. Nem sempre as nossas coisas, os nossos
objectos são só nossos. Mas aquele que é possível, é recheado por nós com
marcas que nos dizem e dizem aos outros que aquele espaço é nosso. Se esse espaço
está dentro na nossa casa, tem os nossos desenhos, ou os nossos posters, os
autocolantes, ou a roupa e o cheiro que só por nós é tolerado. Mas quando a densidade de ocupação da nossa
casa o impede, saímos para espaços mais amplos procurando sítios que possamos
chamar nossos. Pode ser o sítio onde jogamos à bola, o café onde os amigos
se encontram invariavelmente, ou pode ser o lugar resguardado da vista dos
outros onde acontecem coisas que não confessamos. Também esses lugares são por
nós marcados, com o que mais tem a ver connosco, tags, graffitis, garrafas
vazias, sons batidos pela noite fora…
Fazemos
do espaço público o nosso espaço por umas horas para, pela manhã voltarmos à
procura de novos contextos, uns mais organizados, outros ameaçadoramente marcados
pela marginalidade outros ainda, plenos de oportunidades prontas a serem
aproveitadas por quem tiver unhas para as agarrar. Este vai e vem entre
espaços, entre pertenças, entre facetas da nossa vida, é entremeado pelas vidas
dos outros que ocupam os espaços por nós deixados, as oportunidades por nós não
aproveitadas, numa dinâmica fluida de coabitação.
A
consciência deste processo é essencial na intervenção preventiva. O
reconhecimento da importância do nosso espaço, a consciência do papel dos
outros na consolidação desse território, na forma como exigem que o defendamos
ou no modo como o respeitam, são conteúdos nucleares na dinamização de um
grupo. O que torna um espaço, o nosso espaço? Numa qualquer sala somos capazes
de o escolher pela luz, pela vizinhança, pela tranquilidade, ou simplesmente
por estar livre. Como o ocupamos? Sentámo-nos nele, deitamo-nos, preenchemo-lo
com o que temos no bolso, delimitamo-lo para que os outros lhe conheçam os
limites. E como o abrimos à existência dos outros? Convidamo-los a entrar? Mantemo-los
à distância? Trocamos de lugar com os outros? Com quem? Com aqueles que nos são
mais próximos? Com aqueles com quem estamos mais à vontade? Com aqueles que nos
chamam mais à atenção ou com aqueles que estão do outro lado da sala? As regras
simples do jogo obrigam apenas ao estabelecimento de um contacto visual, um
rudimentar sinal de combinação obrigatoriamente silencioso (não é permitido
falar) e o arriscar da troca. Por vezes à má interpretação de sinais conduz a
falsas partidas, a desvios a meio do caminho, a perdas de espaços conquistados.
Como na vida real, aliás. E na reflexão que se segue, entre risos e desabafos,
confessa-se o engano, a sedução, a satisfação e outras coisas mais que emergem
da acção. O sentido da exploração do mundo lúdico, de braço dado com a
descoberta do mundo real, reforça a reinvenção de sentidos e significados. A possibilidade de os viver,
consciencializar e partilhar, é a base da reescrita de uma história vivida e
contada muitas vezes. Mas na dinâmica preventiva, no seio do grupo de treino de
competências pessoais e sociais, o tempo pára para que a palavra empreste algo
mais à simples passagem ao acto.
Raúl Melo
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