Vimos, há uns dias
atrás, como a divisão do ciclo de vida humano utilizada por diferentes culturas,
em diferentes momentos históricos, já parece confirmar, e também desafiar, as
noções de fase, etapa, nível, estádio
do desenvolvimento psicológico.
A partir do seculo XIX,
a teoria da evolução induziu uma ampla utilização destas noções por diversas
disciplinas científicas. Para além dos estádios de evolução das espécies
propostos pela própria biologia, os geólogos, por exemplo, descrevem-nos as
várias eras de formação do globo terrestre ou os sociólogos os diferentes
estádios de evolução das sociedades.
Nas palavras de
Tran-Thong (1976), a noção de estádio ou etapa descreve então e essencialmente
“os momentos sucessivos de um devir”
(p.371), uma vez que “traduz, numa ordem
irreversível, o tempo que dura uma qualidade ou um estado, entre o seu
aparecimento e o seu desaparecimento ou a sua substituição ou integração num
outro estado ou em uma outra qualidade” (p.371).
Para além da história,
da educação e das múltiplas disciplinas científicas que as utilizam, as noções de
fase, etapa, nível, estádio de evolução de um qualquer fenómeno físico ou social encontram ainda o seu
fundamento teórico no debate filosófico sobre o devir que, em Heráclito,
Lau-tseu, Hegel, Bergson e muitos
outros, é universal e contém em si-mesmo a contradição entre o permanente e o
mutável, o uno e o múltiplo, o contínuo e o descontínuo.
Porém, se olharmos a
história da nossa disciplina, a delimitação de fases, etapas ou estádios do desenvolvimento psicológico começou
por se centrar mais na descrição das mudanças ou descontinuidades que marcam a evolução
e diferenciação progressiva da conduta da criança e do adolescente. Vejamos!
As
primeiras descrições do desenvolvimento psicológico são diários ou relatos
biográficos do aparecimento sucessivo dos novos comportamentos ou
capacidades que podem ser observados ao longo dos primeiros anos de vida.
Já em 1787, Dietrich Tiedmann, Professor
de Grego e Filosofia na Universidade de Marbourg, propõe as “Observações sobre as Capacidades Mentais nas
crianças”, onde relata detalhadamente a mudança e evolução do comportamento
sensório-motor e da linguagem do seu filho até aos 2,5 anos de idade.
Multiplicam-se então as biografias
de bebés e crianças pré-escolares e, passado um século, o próprio Charles
Darwin regista, com a colaboração da mulher, o desenvolvimento dos seus 10 filhos,
particularmente do mais velho, William Erasmus,
entre 1839-1844, e de Anne Elizabeth, nascida em 1841. A partir das suas
próprias observações, Darwin constrói então um questionário sobre a expressão
de emoções e obtém dados adicionais de familiares com filhos pequenos e de outros
cientistas que observavam animais, crianças ou indivíduos de diferentes etnias,
com perturbações psíquicas ou défices sensoriais. Esta extensa investigação culmina
na publicação “The Expression of the emotions in man and animals”, em
1872, e ainda de um artigo, “A biographical sketch of an infant”, publicado
em 1877, que nos oferece um relato, naturalista e rigoroso, da ontogénese da
conduta sensório-motora, da imitação e linguagem, das
expressões emocionais de raiva, medo ou prazer de brincar, do pensamento, consciência
de si e sentido moral que observara ao longo dos primeiros 5 anos de vida do
seu filho mais velho.
Celeri, Jacintho e Dalgalarrondo (2010) traduziram
este artigo para português. Deixo aos meus leitores dois pedaços desse texto
que atestam bem o rigor de observação e o interesse de Darwin pela evolução das
mudanças de conduta do pequeno William Erasmus.
Contudo, é Wilhelm Preyer, contemporâneo de Darwin,
que nos deixa “The Mind of the Child”
(1882), a obra eventualmente mais marcante desta fase pioneira da Psicologia do
Desenvolvimento, que aqui evocaremos dentro de alguns dias.
Conduta
sensório-motora
“Durante os
primeiros sete dias de vida várias ações reflexas, por exemplo, espirrar,
soluçar, bocejar, esticar-se e, obviamente, sugar e chorar são bem executadas
pelos bebês. No sétimo dia eu toquei a sola nua de seu pé com um pedacinho de
papel e ele retirou-o para longe, encurvando ao mesmo tempo seus dedos, como
uma criança mais velha faz quando lhe fazemos cócegas.”
Emoção,
Comunicação e Linguagem Verbal
“…os desejos de um
bebé são inicialmente tornados inteligíveis pelos gritos instintivos que,
depois de um tempo, são modificados em parte inconscientemente e em parte, como
acredito, voluntariamente, como uma maneira de comunicação - pelas expressões
inconscientes peculiares, pelos gestos e de forma marcante por diferentes
entonações - e, finalmente, pelas palavras naturalmente inventadas pela
criança. Depois as palavras são imitadas de forma mais precisa, a partir da
audição e esta capacidade é adquirida de uma forma maravilhosamente rápida.”
Maria Stella Aguiar
Referências
Cairns, R.(1983). The
emergence of developmental psychology. In P.H. Mussen (Ed.) Handbook of
Child Psychology, Vol. 1 (4th edition) (pp.41-95). NJ: Wiley.
Cairns, R., & Cairns, B.
(2006). The making of developmental psychology. In W. Damon & R. M. Lerner
(Eds.) Handbook of Child Psychology, Vol. 1 (6th edition) (pp. 89-165). NJ: Wiley.
Celeri, E., Jacintho, A., & Dalgalarrondo, P. (2010). Charles Darwin: um observador do desenvolvimento
humano. Revista Latinoamericana de
Psicopatologia Fundamental, 13, 4,
pp. 558-576. (http://dx.doi.org/10.1590/S1415-47142010000400002)
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