O Baralhações é um
material de dinamização de grupos que um dia tive a possibilidade de criar. É um
baralho de emoções através do qual muitas reflexões podem acontecer a partir de
uma abordagem lúdica. Porque nem todas as prevenções são universais e porque
nem todas as dinâmicas são de grupo, escolhi uma experiência que tive com este
material para o ilustrar.
Habituamo-nos a
pensar a prevenção como algo que acontece antes dos problemas que queremos
evitar mas frequentemente lidamos com situações em que procuramos prevenir que
os problemas venham a ser maiores do que já são. Esta é a esfera da prevenção
indicada e nela se movem profissionais e indivíduos que gerem situações de
risco presente que se deseja que não passem a risco instalado. Era esta situação
que eu tinha pela frente com um jovem que apresentava consumos esporádicos de
cannabis. Falava-me da confusão dos seus sentimentos e da dificuldade de os
gerir, da incapacidade de os ler corretamente quando expressos pelos outros e
sobretudo do seu jeito desajeitado de dar resposta. Propus-lhe que batêssemos
uma cartada.
Achou que eu
estava maluco - o que em psicologia dá sempre jeito para que o outro não nos
veja de forma tão ideal - mas aceitou quando me viu puxar do Baralhações. Explorou
algumas das cartas e dos desenhos bem dispostos que o ilustram e perguntou-me
como se jogava. Disse lhe "tem dias". A convicção do meu
"amalucanço" aumentou. Expliquei que o jogo que íamos jogar mudava
consoante o dia, mas que, hoje, era muito fácil. Cada um de nós teria cinco
cartas ao acaso e que iríamos simplesmente bater umas cartas. Cada vez que puséssemos
uma carta na mesa poderíamos ir ao baralho buscar outra. Estas eram as regras básicas,
mas consoante as situações as regras poderiam mudar. Ele concordou e começamos
a jogar.
A primeira carta
foi minha e perguntei-lhe o que é que ele achava que a imagem representava. Era
uma cena qualquer em que um grupo se divertia numa festa. Disse-me que parecia
representar alegria. Perguntei lhe então o que é que eu quereria dizer jogando
uma carta de alegria. Pensou um pouco. "Pode querer dizer que está alegre...
Ou desafiar-me para ir a uma festa... Sei lá." Sugeri-lhe que batesse uma
carta de resposta. Olhou para as suas cinco cartas e acabou por escolher uma
outra em que três amigos parecem pousar para uma fotografia com um a fazer
corninhos ao outro. Fui ao baralho e procurei nele a carta que me interessava e
coloquei-a em cima da mesa. Quando foi a vez de ele biscar disse-lhe que não
podia escolher. Teria de tirar uma carta qualquer ao acaso. Reagiu. "Isso
não é justo". Expliquei-lhe que nem todos tínhamos acessos às cartas da
mesma maneira e que se ele queria jogar teria de aceitar a regra. Rabujou mas
acabou por lançar uma segunda carta. Repeti a procura da carta que mais me
interessava e quando ele se apressava para biscar disse-lhe que, embora pudesse
fazê-lo não poderia ver a carta. "Então para que é que serve?" "É
um recurso que tens. Sabes que o tens mas não sabes qual é". Voltou a
rabujar. Com menos cartas visíveis a tarefa dele tornou-se mais difícil. Não
tinha cartas de jeito. E ainda por cima não podia ver a última. Disse-lhe que
podia passar. Deu-me a vez e eu fui buscar nova carta e dei continuidade a este
diálogo de emoções. Disse-lhe que como não tinha deitado uma carta fora não
poderia biscar, mas eu permitia-lhe trocar uma carta que não lhe interessasse
por outra do baralho, com a condição de ele não poder ver a que biscasse.
Embora não gostasse da regra aceitou-a. Passou a ter duas cartas desconhecidas
e três que pouco lhe interessavam. Concordamos que, ao não jogar, não só a
situação dele não melhorava como eu poderia começar a desinteressar-me dele.
Disse-lhe que respondesse de qualquer modo. Ou com uma carta completamente
dissonante da minha ou arriscando uma carta das desconhecidas.
O jogo continuou
com outras peripécias mas no fim o resultado foi uma grande irritação com o
resultado daquele diálogo. A conversa sobre o jogo ajudou o jovem a rever-se na
dinâmica. De facto nem sempre temos ao nosso dispor as cartas que queremos, às
vezes porque o nosso baralho é pobre, outras vezes porque não sabemos jogar com
as cartas que temos outras ainda porque não nos conhecermos suficientemente bem
para sabermos das nossas cartas. Aí, claramente podemos optar por nos
retrairmos e sair do jogo, ficar a ver sem participar ou arriscar, e mesmo
podendo parecer estranho, o diálogo permitirá a troca e o crescimento. O
sorriso de se ver ilustrado no jogo permitiu-me perceber que a mensagem tinha
sido captada. Ficamos um pouco mais a explorar o jogo com outras regras
malucas, umas minhas outras dele, mas a cartada seguiu animada. No final da
sessão despediu-se a rir. "Ninguém vai acreditar que estive a tarde a
jogar as cartas consigo." "Pois. É tão plausível como dizer que me
diverti imenso com os teus problemas".
Enfim. Quem disse que a prevenção tem de ser muito séria?
O importante é que faça sentido.
Raúl Melo
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