Permitam que hoje
desvie, de novo, o percurso do nosso comboio do desenvolvimento psicológico
para recordar um acontecimento que a vida académica me ofereceu no final do ano
que passou.
Conduzida por uma
dessas insondáveis leis do acaso, fui chamada a apresentar o livro de Jorge
Ferreira, que questiona O que nos leva a
ser morais?, precisamente na semana em que, na África da minha infância, e
também do autor, e em todo o nosso mundo, se celebrava esse exemplar moral que
foi Madiba. Coincidência surpreendente? Talvez. Seja o que for, acredito que é
certamente um sinal da actualidade da temática que este livro nos propõe. Um
mundo, representado pela multidão dos seus governantes, que se desloca à África do Sul para celebrar a memória de Nelson Mandela, é certamente um mundo que busca
o desenvolvimento moral.
Mas, o que procuramos,
de facto, no percurso de vida e de conduta deste e de outros homens que
recordamos como moralmente exemplares? A leitura de Jorge Ferreira ajuda-nos a
responder:
“A construção de uma identidade moral é uma condição necessária, mas não
suficiente para que o individuo se sinta fortemente motivado para agir de forma
moral. Para isso, é também necessário que o indivíduo estabeleça um compromisso
psicológico com os conteúdos ou princípios morais que definiu para a sua
identidade, um compromisso com o self” (p.185).
Como o autor nos diz,
penso que em exemplares morais como Madiba, procuramos precisamente esse compromisso
com o self, esse sentido de auto-consistência,
de integridade psicológica e moral que, nas situações
de conflito social mais dramáticas, os defende de opções egocêntricas, pragmáticas
e socialmente convenientes e os motiva a regularem a sua conduta pela
fidelidade a uma ideologia ética
orientada para princípios morais. Freitas do Amaral, no prefácio à excelente obra
de um especialista português sobre a História recente da África do Sul (Pina, 2012)
expressa precisamente esta ideia de Madiba:
“Então, qual foi a coragem específica de
Nelson Mandela, que o transformou na grande figura histórica do seu país e do
mundo? Foi…a coragem do respeito pelo próximo, da renúncia à vingança e da
vontade de reconciliação nacional. Depois de 27 anos na prisão, que grande
exemplo, o seu!” (p.19).
Os investigadores do desenvolvimento moral confrontam-nos
então com a questão da acrasia, essa
inconsistência frequente entre o pensamento e a acção moral que marca a conduta
das pessoas que somos e que se esbate, de forma surpreendente, nas pessoas que
pressentimos moralmente exemplares. É verdade que, de um ponto de vista filosófico,
epistémico, o conhecimento do bem induz o exercício do bem, pois a conduta
moral é necessariamente controlada pelo conhecimento de um conjunto de normas e
princípios, relativamente universais, que regulam a vida social, designadamente
o princípio de justiça entre direitos e deveres das pessoas. Contudo, do ponto
de vista psicológico, esse conhecimento do bem é apenas um componente de
regulação da acção moral, entre outros, pois todos nos damos conta como é fácil
praticar o bem em certas situações e não em outras, onde o interesse pessoal,
ou a pressão social, ou muitas outras razões nos conduzem à prática de acções
que sabemos, conscientemente, imorais. Convido então os meus leitores a
descobrirem como esta questão da acrasia levou Jorge Ferreira e outros
investigadores do desenvolvimento moral a procurarem captar e compreender as
diferenças individuais na motivação para
a acção moral.
Como muitos já o afirmaram, acredito que os tempos que
vivemos são, de facto, tempos de crise moral no mundo ocidental. Uma vez mais
na História dos homens e das sociedades, vivemos orientados para a felicidade,
para o sucesso, para o pragmatismo e utilidade imediata, enfim, para um sentido
de conveniência pessoal e social que é frequentemente imoral. Mas, tanto a conceptualização
do desenvolvimento psicológico, como o percurso de vida de exemplares morais
como Madiba, levam-nos a acreditar que as “crises” são sempre oportunidades de
mudança e que essa mudança pode sempre resultar em desenvolvimento psicológico,
social e moral.
Para isso acontecer, acredito na educação, na
transmissão de conhecimentos e de instrumentos de ação que ampliam o nosso
conhecimento e o nosso poder sobre o mundo e promovem o nosso desenvolvimento
pessoal e social (Vygotski, 1978). Aliás, contam os biógrafos que o também
Nelson Mandela afirmava que: "A educação é a arma mais forte que se pode
utilizar para mudar o mundo".
Se assim for, tanto a investigação da psicologia
moral, como a memória daqueles que reconhecemos
modelos morais poderão constituir instrumentos de educação contra a “crise” que
vivemos e contra muitas outras ”crises” que marcam e que virão a marcar o
percurso de vida de cada um de nós e da sociedade que cada dia construímos.
M. Stella Aguiar
Referências
Ferreira, J. (2013). O que nos leva a ser morais? A psicologia da motivação moral.
Lisboa: Climepsi.
Pina, R. C. (2012). África do Sul. A difícil transição. Lisboa: Fronteira do Caos.
Vygotski, L. S. (1978). Mind in society. The development of higher psychological
processes. Cambridge, UK: Harvard University Press