Helena Àgueda Marujo é Professora da Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa, Formadora e Escritora, Membro do Board of Directors da International Positive Psychology Association, Representante Português na Rede Ibero-Americana de Psicologia Positiva e Membro da Comissão Científica da Associação Portuguesa de Estudos e Intervenção em Psicologia Positiva.
Da Importância da Psicologia para a Cultura Contemporânea
“Terá vivido aquele por cuja vida ninguém se preocupou?”
Elias Canetti, Prémio Nobel da Literatura de 1981
Este texto, uma humilde reflexão pessoal sobre as consequências actuais e desejadas da psicologia na sociedade, inspirou-se em 3 questões que me têm inquietado:
1) De que forma contribui hoje a psicologia para a cultura e a transformação social?
2) Quando a psicologia tem impacto na sociedade, como é que influencia, de forma a elevar a qualidade da experiência humana?
3) Como podem os psicólogos, se não forem eles mesmos cultos, compreender e apoiar a natureza humana em todas as suas vertentes comunicacionais, relacionais, emocionais, motivacionais, espirituais, éticas, e assim estar presentes nos tópicos mais vitais da vida moderna?
A psicologia não está isolada das práticas sociais; está até bem presente nelas. Mas estará a pensar cuidadamente o seu contributo? Acredito que, como qualquer outra ciência das humanidades, precisa centrar-se em três objectivos: ajudar a pensar criativa e profundamente a existência humana, associar-se a uma tradição de reflexão crítica sobre a ciência e a sua democratização e, last but not the least, ser útil para as pessoas. Sonho com uma psicologia renovada, que mantenha a exigência metodológica associada a um sentido humanístico e de relevância efectiva para a vida real e actual das pessoas, aquilo a que M. Csikszentmihalyi chama fenomenologia sistemática.
Como nos diz Fukuyama no livro “O fim do Homem”, na área do comportamento humano sobressaem actualmente fenómenos culturais com tremendo impacto (impacto que é também politico, legislativo, legal, ético…) como o dos conhecimentos sobre a química do cérebro - e a capacidade de a manipular para mudar esse comportamento - através de fármacos. Vejam-se os impressionantes dados recentes sobre o aumento exponencial de medicação psicotrópica em crianças e adultos para gerir comportamentos considerados “desajustados”.
Tenho-me perguntado como estão a psicologia e os psicólogos a contribuir para o fenómeno, e o que têm a dizer sobre isto? Ou sobre o uso de técnicas comportamentais para torturar presos? Ou sobre como os instrumentos de avaliação e diagnóstico psicológico servem hoje para tomar decisões sobre a retirada de crianças à família e consequente institucionalização, ou para decidir sobre formatos de custódia parental? Ou sobre o uso de testes para decidir quem se despede numa empresa? Questiono-me de que forma está a psicologia a ajudar a pensar o que significa uma vida de qualidade, mais autêntica, que valha mais a pena? Será a psicologia uma ciência auto-consciente, atenta à sua evolução, utilidade e relevância? Como torná-la valiosa sem sacrificar o rigor, e conseguir que este não seja um rigor mortis?
John Brockman, editor do EDGE, defende a ideia da existência de uma 3ª cultura, a dos intelectuais em acção. Caracteriza-os como os cientistas empíricos que tornam visível o significado mais profundo da vida. Para ele, o caminho é feito partindo da anestesia individual e colectiva, usando a ciência para ir em direcção à sabedoria de cada um e todos (e não só a dados, informação ou conhecimento). Sublinha a ideia da ciência como “um convite para pensar” e para pensar de outras maneiras, questionando os nossos pressupostos básicos e o conforto do conhecido e da resignação ao tradicional. Quando me questiono, ressoa também em mim Francis Bacon, que em 1620, referindo-se à ciência, dizia “is not na opinion to be held but a work to be done”. Que trabalho estamos a fazer pelas pessoas e que contributos positivamente transformadores temos trazido? De que forma a investigação em psicologia se faz virada para o umbigo dos que investigam, mais do que para o seu impacto efectivo? Que receios temos – e porque temos - de transpor os muros da ciência básica para implementar uma psicologia aplicada e com sentido na vida actual, interventiva nos seus problemas e fenómenos mais marcantes?
Preocupa-nos, enquanto psicólogos, que hoje muito do impacto da psicologia aconteça na avaliação e diagnóstico, feitos na singeleza e, por vezes, irresponsabilidade, com que rotulamos patologicamente e, assim, fragilizamos os seres humanos? Preocupa-nos que contribuamos mais para a diferenciação patológica e menos para a experiência de excelência ou, até, de normalização? Preocupa-nos que, em consequência, a psicologia seja um potencial veículo para a medicação psicotrópica, em especial nas crianças - com menos poder de dizer “não” a uma modificação química dos seus comportamentos? Preocupa-nos também que os psicólogos concorram para a injustiça social e para uma distribuição menos equilibrada da abundância, e sejam sobretudo uma pequena elite que trabalha com pequenas elites? Preocupa-nos que o investimento de investigação feito junto das populações mais pobres seja ínfimo, e a psicoterapia um luxo a que só uma minoria pode aceder (sendo também que muitas das suas técnicas negligenciam a fragilidade cognitiva e educativa dos mais desfavorecidos)? Preocupa-nos estarmos demasiado focalizados em atingir grandes verdades universais e teorizações abstractas, sem o contraponto da humildade e da aceitação de que as verdades em ciências humanas são muitas vezes transitórias, subjectivas, não necessariamente seguras nem transcendentes, inacabadas, mas potencialmente facilitadoras de novos pensamentos, de novas práticas, doutras formas de nos questionarmos, de melhores existências? Como dizia Chantal Maillard, no Jornal El País (10/04/2010), “o não acabado tornou-se, na nossa época, mais que um valor estético, um sinal epistemológico”.
A psicologia não pode ser uma entidade parasitária ou perturbadora da vida das pessoas. Não pode esperar estar acabada e repleta de verdades para ser actuante e facilitadora de culturas, existências, sociedades mais esclarecidas e esperançadas. Creio apaixonadamente que precisa contribuir para culturas e vidas com sentido, com mais liberdade de escolha, e mais “anima” – e que para tal seja cada vez uma ciência de académicos, investigadores, profissionais mais cultos, mais sensíveis, mais transformadores, até mais poéticos.